Política tutelada, democracia relativa

Já disse antes que Jair Bolsonaro deveria ter sido impichado quando estava no poder ou que acabaria cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral em alguma das 15 ações que lá ainda tramitam. Uma delas é forte, trata da antecipação do pagamento do Auxílio Brasil e do Auxílio Gás, o que fatalmente lhe renderia uma condenação por abuso de poder político e econômico, uma vez que configura compra de voto. O TSE, porém, resolveu condená-lo à inelegibilidade por motivo menor — questionar as urnas eletrônicas numa audiência com embaixadores estrangeiros veiculada pela EBC.

Provavelmente ciente da fragilidade da acusação, o relator Benedito Gonçalves acrescentou ao caso vários outros elementos sem relação direta com o episódio, inclusive a polêmica ‘minuta golpista’ encontrada na casa de Anderson Torres. O voto de 400 páginas foi endossado por 5 dos 7 ministros, que justificaram a condenação de Bolsonaro pelo “conjunto da obra”. O problema é que dois erros não fazem um acerto. Punir o ex-presidente por analogia deixa a sensação de que a lei foi usada com objetivo político, como um recado a quem ousar questionar o sistema eleitoral.

Avalio que a decisão de hoje se insere no mesmo contexto da condenação de Deltan Dallagnol e dos inquéritos políticos que permanecem abertos no Supremo sob curadoria de Alexandre de Moraes. Parace sugerir um esforço do Judiciário em tutelar o debate político, como se a democracia precisasse ser defendida da própria democracia, como diz o cientista político Leonardo Barreto.

Experiente observador da cena política em Brasília, Barreto enumera os recados que o TSE estaria dando com a condenação de Bolsonaro: impor limites às críticas que se pode fazer aos atores constitucionais (principalmente Judiciário); definir regras para o questionamento do processo eleitoral; deixar clara a responsabilidade de atores políticos pela manutenção do status quo; desincentivar discursos políticos antiestablishment e; incentivar a moderação das facções políticas, que devem se ater ao diálogo institucionalizado.

Barreto identifica, em agosto de 2022, o que seria o ponto de inflexão nesse entendimento por parte da cúpula do Judiciário brasileiro. Em visita ao STF, a ministra do Tribunal Constitucional alemão, Sibylle Kessal-Wulf, alertou para o risco de manejo desregrado das instituições democráticas em tempos de redes sociais, e defendeu a imposição de limites a partir do conceito de “democracia defensiva”, por meio da qual a Justiça deve agir de forma ativa contra quem ameace a ordem estabelecida. “Nesses casos, segundo ela, a liberdade de expressão não pode servir como um escudo para ações que possam deteriorar as instituições democráticas.” Soa familiar.

Sibylle tem seu ponto, mas lá na Alemanha o Tribunal Constitucional é constitucional de fato, não é tribunal de apelação, muito menos de ações penais ou eleitorais. É autônomo em relação ao sistema jurídico e estabelecido na cidade de Karlsruhe, longe das demais instituições do Estado, como as sedes do governo e do Parlamento, em Berlim. A experiência alemã, portanto, não encontra equivalência na realidade brasileira e acaba servindo a um conceito de tutela que tampouco encontra respaldo na Carta Magna de 1988.

Em vez de nos aproximarmos da Alemanha, corremos o risco de percorrer a trilha venezuelana. No mesmo dia em que o TSE tornou Bolsonaro inelegível por 8 anos, a Controladoria Geral do regime de Nicolás Maduro inabilitou a opositora María Corina Machado de exercer cargos públicos por 15 anos. A inabilitação de Corina, principal nome da oposição a Maduro, foi determinada por “irregularidades administrativas” da época em que foi deputada, de 2011 a 2014. A medida, na verdade, foi imposta em 2015 e tinha vigência de 1 ano, mas o órgão decidiu ampliar a punição por seu apoio às sanções dos EUA contra a ditadura bolivariana. Ela está fora da próxima eleição. Lula e Maduro, que compartilham do mesmo conceito relativo de democracia, comemoram.